domingo, 25 de outubro de 2020

 

ARTISTAS, AFETOS E AFINS - n. 01

 

 

 Manifesto  2020 - Samuel de Fréitas Pérsio
 
 

 

Autodeclaração


Samuel de Freitas Pérsio, 36 anos, filho de Maria Augusta de Freitas Pérsio e Marcílio Pérsio, nasceu em 11 de maio de 1982, em Araucária (Paraná).

Samuel é nome bíblico, carregado de projeções ancestrais. O sobrenome de Freitas, de origem materna, é lembrado por ele como legado de seu avô, João Batista de Freitas, “homem gentil, de origem negra, pedreiro e contador de histórias, sempre bem-humorado. Minha cabeça crespa e cabelo grosso vêm dele”. Pérsio é nome do ramo paterno, italianos trabalhadores do campo, “o lado mais sisudo da família […], mas meu pai, seu Marcílio, sempre foi o oposto disso, sempre muito generoso e gentil”.

Assinar seus trabalhos artísticos como Samuel de Freitas Pérsio, nome e sobrenome completos, foi uma decisão muito elaborada, uma afirmação consciente de quem lê as marcas, impressas em seu corpo e em sua memória, dos homens e mulheres de sua classe que, antes dele, enfrentaram os desafios de seu tempo.

Até os 5 anos, Samuel viveu em Araucária, no interior do Paraná, em uma vila de trabalhadores da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), onde seu pai foi trabalhar como ferroviário. Sua família, de origem camponesa, migrou para a cidade em busca de sobrevivência, assim como muitas outras vitimadas pelo êxodo rural intensificado pelas medidas econômicas do governo ditatorial dos anos 1970. Na cidade, o trabalho de seu pai dividia-se entre a ferrovia e a construção civil.

Na década de 1980, a imposição capitalista levou à mudança do modelo de transporte e ao declínio das ferrovias, substituídas pelas rodovias. A família de Freitas Pérsio foi morar em um núcleo habitacional.

O acirramento das políticas econômicas de mecanização do campo e concentração de indústrias na região Sudeste levou muitas famílias da classe trabalhadora rural e urbana a migrar das pequenas cidades do interior do Paraná e de São Paulo para centros urbanos como Campinas e região. Assim, em 1990, os de Freitas Pérsio chegaram em Valinhos (São Paulo), onde Marcílio passou a trabalhar como pedreiro.

Nesse contexto sociocultural, em uma região de adensamento da classe trabalhadora, Samuel, o quarto e único filho homem, cresceu, fez o ensino básico e aprendeu com o paí o ofício de pedreiro; profissão que exerce desde os quinze anos.

Na adolescência, iniciou-se também no aprendizado de técnicas e expressões artísticas, quando com 16 anos, em 1998, estudou desenho artístico com o professor Sebastião Moreira na Casa de Cultura de Valinhos. Foi então do desenho à palavra ou vice-versa, pois, “motivado pelos causos do meu avô materno, tomei gosto pela criação de personagens e histórias”. Porém o rígido cotidiano da vida de jovem operário da construção civil e as barreiras sociais impuseram obstáculos entre os ofícios de pedreiro e os da criação artística.

Ainda assim, desde esse primeiro contato formal com o fazer artístico, no final da década de 1990, Samuel nunca deixou de desenhar e escrever. Nos fins de semana, pela manhã antes de sair para o trabalho ou, por vezes, em meio ao canteiro de obras, vários cadernos e folhas soltas foram preenchidas com personagens, poemas e histórias.

De forma ininterrupta, desde a adolescência até a vida adulta, o exercício do imaginar e materializar formas e emoções sobre uma superfície plana vem ocupando os intervalos do tempo de Samuel vendido à construção civil.

Criar obras pictóricas em tela a partir de seus desenhos era um desejo latente, porém, até recentemente, não havia ousado obter a autopermissão; pois, como explicita em seu poema “Autodeclaração”: na sociedade que fragmenta e hierarquiza ofícios e saberes, criar e pintar em telas emolduradas é capacidade apartada de quem ganha a vida criando e pintando paredes.

Mas, nos últimos três anos, a produção de pinturas e esculturas foi se instalando entre suas lidas diárias, tomando espaço em sua casa transmutada em uma oficina de arte.

Compreender o caminho que o levou a criar obras pictóricas e escultóricas é importante, pois essa autodeclaração de artista, feita por um dos de Freitas Pérsio, foi forjada na lida coletiva das tramas de saberes presentes nas práticas culturais e políticas da classe trabalhadora em grandes centros urbanos, como é a cidade de Campinas.

O poema “Autodeclaração”, escrito em março de 2017 em meio a intensa criação pictórica, traz a síntese do percurso de constituição dessa autopermissão de existir como um ser inteiro ou, ao menos, de buscar sê-lo.

Nessa busca, todos elementos artísticos, dos temas aos suportes, molduras e tintas, foram extraídos de seus conhecimentos e experimentações na construção civil. As tintas têm as mesmas bases das usadas em paredes e pisos, os suportes são extraídos de madeiras, tecidos, lonas e sacos de ráfia que embalam areia, pedras, cal e cimento.

As pinturas e esculturas aqui expostas, criadas entre 2016 e 2018, são autodeclaratórias da permissão de ser artista, grafada em versos, moldada em ferros e pigmentada em panos, lonas e sacos de cimento.

Em sua casa ateliê oficina, além das obras, desenhou, planejou e construiu todos os painéis e demais mobiliários expositivos para esta exposição, para a qual também concebeu e executou a iluminação e a distribuição espacial de cada peça.

Não é somente a soma de saberes e competências para imaginar, planejar e realizar tais fases da atuação criativa que demarca o caminho trilhado até sua autodeclaração de artista. A isso tudo, Samuel de Freitas Pérsio juntou o que trocou com outros que, como ele, em 2013, saíram às ruas em busca de espelho: gente trabalhadora que se jogou num mar de corpos que ansiava por sair do espaço contido entre a casa e o trabalho, para se encontrar e se reconhecer em outros rostos.

Assim foi seu mergulho nas manifestações e movimentos sociais. Assim tem sido a intensificação de troca de saberes e técnicas diversas de criação e expressão artística para encontrar sua própria voz. Como ele mesmo afirma: “desenhar, pintar, criar formas, é a minha fala”.

Essa busca por encontrar sua própria voz tornou-se ainda mais intensa nos últimos anos, quando os caminhos que trilhou em militâncias coletivas em midialivrismo e direitos humanos o fizeram consciente da urgência em desenvolver saberes e habilidades para colocá-los a serviço das frentes de luta contra todo tipo de opressão.

O encontro com outros trabalhadores artistas propiciou a Samuel conhecer e desenvolver seus ofícios. Assim, aprimorou-se em técnicas de iluminação cênica com o músico e produtor Daniel Dias, na Rede Usina Geradora de Cultura/ Escola Municipal de Cultura e Arte, em 2016/2017; desenvolveu-se na confecção e manipulação de bonecões com o mestre bonequeiro Sebastian Marques, na Oficina de Sonhos da Estação Cultura, em 2016/2017; fez-se aprendiz e parceiro na confecção, manipulação e interpretação teatral com bonecos Banraku do criador e diretor Jesus Seda, na Rede Usina Geradora de Cultura/ Escola Municipal de Cultura e Arte, em 2018.

Sua voz própria forjou-se também ao intensificar a participação junto com outros trabalhadores artistas na organização de mostras de audiovisuais, na militância midialivrista, na concepção e montagem de cenários, no planejamento e execução de montagem de equipamentos para captação, registro e transmissão de som e imagem com movimentos sociais que constroem o Mostra Luta, a Sala dos Toninhos, a Oficina Geradora e as ações públicas do Conselho de Direitos Humanos de Campinas e o Coletivo Socializando Saberes.

Não por acaso, as produções pictóricas e escultóricas reunidas nesta mostra dão a ver a explosão de suas “falas” autodeclaratórias entre 2016 e 2018.

A mostra Autodeclaração é uma seleção de obras que apresentam rostos, mãos e silhuetas de corpos que dá a ver que, entremeios a ser pedreiro e ser artista, Samuel trilhou caminhos que desmontam as falas daqueles que segregam formas de vida sob substantivos estanques.

Nessa caminhada, aos poucos foi ganhando forças para afirmar com voz própria que os ofícios de pedreiro e de artista, que a história de sua gente abarca, não são nem um, nem dois, mas Duos.

Duos, como dizem os dicionários, são sujeitos de iguais potências; portanto, ante a vida cindida pelo capital, afirmar-se Duo é subverter as disjuntivas dos recortes sociais demarcadores de papéis e destituidores dos conhecimentos ancestrais que encarnam toda criação humana.

Esse gesto não dá conta da totalidade das ancestralidades presente em cada gesto da produção da vida, mas oferece um caminho para vencer a lógica fragmentária da mercantilização da experiência humana.

Foi nesse caminho que, no corpo que carrega origens negras e rubras dos de Freitas Pérsio, Samuel percebeu a necessidade de declarar-se Duo, na carne e na arte.


Sônia Aparecida Fardin

texto escrito para a Exposição Autodeclaração - setembro de 2018.

 https://www.facebook.com/samuel.persio

 https://cartacampinas.com.br/2018/09/x-autodeclaracao-reune-obras-do-artista-samuel-de-freitas-persio-na-estacao-cultura/



 João Bosco, artista em seu ateliê. 2013

Para pensar as encarnações de Chronos!

sábado, 24 de outubro de 2020

 

Breve história de um Mouro em um Museu

Uma família de refugiados chega a uma grande cidade, onde milhares iguais a eles lutam para obter o suficiente para pagar um cômodo em bairros marcados pela fome, insalubridade e subemprego.
O homem jovem tem estudo, mas não tem trabalho, a moça grávida cuida das três crianças pequenas. Apesar do pouco espaço e recursos os dois cômodos em que se alojam torna-se lugar de apoio para muitos como eles, desterrados por lutar para mudar a ordem injusta.
O grupo de refugiados, suburbanos e desempregados encontra um lugar onde se reunir e acessar informações para escrever artigos e, principalmente, seguir com os planos de questionar a ordem vigente e construir uma forma de sociedade diferente da desigual e opressora que os empurrava à indigência. Sobre os encontros nesse lugar, escreveu o refugiado:
“nós, a escória da humanidade, estávamos sentados (…) tentando nos educar e preparar armas e munição para as batalhas do futuro…. As vezes não tínhamos o que comer, mas isso não nos impedia de ir ao museu (…) Alí pelo menos havia cadeiras confortáveis para sentar e ler, e no inverno havia o aquecimento que não tínhamos em nossa casa, isso quando tínhamos de fato uma casa ou onde morar” (MARX, 1851 apud GABRIEL, 2013, p. 281)
Na populosa e insalubre Londres da década de 1850 um museu público fez grande diferença para a atuação do refugiado de nome de Karl Marx que também era chamado pelo familiares de Mouro, o Museu Britânico. Quando o já centenário museu inaugurou uma ampla sala de leitura, em 1857, essa passou a ser um recurso fundamental, como espaço adequado para pesquisa e acesso à conhecimentos diversificados e atualizados, para Marx realizar seu trabalho de estudar e desvelar o modo de produção capitalista.

O bairro proletário onde a família Marx vivia ficava há 15 minutos de caminhada do museu. Os Marxs, como muitos outros despossuídos de bens e recursos, integravam a comunidade territorial vizinha ao primeiro museu público, secular e gratuito que se tem notícias. Uma instituição portentosa, criada sob a égide vitoriana, que mantinha um espaço físico e um acervo dedicado à oferecer condições arquitetônicas dignas e pluralidade de ofertas à leitura. Nessa sala, sobre a pilha de saberes acumulados pela ordem econômica que pariu a classe trabalhadora, um sujeito esfarrapado se debruçou para abalar os alicerces de uma e fomentar a auto-organização da outra.
A importância da sala de leitura do Museu Britânico no cotidiano de trabalho de Karl Marx é apenas um dos muitos exemplos possíveis da potencialidade concreta que museus, casas de cultura, bibliotecas e centros culturais agregam à produção de conhecimento pela classe trabalhadora e para a emancipação da classe trabalhadora.
Sem incorrer em comparações extemporâneas, penso não ser exagero ver semelhanças entre estes recursos culturais e logísticos, que deram impulso ao trabalho de Marx, com o acesso a um computador público e uma rede gratuita de internet de banda larga nas casas de cultura das periferias nos dias de hoje. Assim como guardam similitudes nas possibilidades de convívio com outros sujeitos da mesma comunidade em busca de acessar e produzir conhecimentos em um ambiente de estímulo ao livre pensar.
Faço menção hoje — véspera do Dia Internacional dos Museus — a essa breve história de um Mouro em um Museu, como singela homenagem aos trabalhadores e usuários dos museus de todos os tipos, formatos e propostas, em especial aos que são ocupados como trincheiras na luta por um mundo em que o conhecimento não seja mais um privilégio, mas sim o contrário, como escreveu o Mouro
“Os senhores da terra e do capital sempre usarão seus privilégios na defesa de seus monopólios econômicos (…) Conquistar o poder político tornou-se portanto, o grande dever das classes trabalhadoras… Um elemento para o sucesso elas possuem — são maioria; mas a maioria numérica só pesa na balança se unificada pelo grupo e conduzida pelo conhecimento” ( MARX, 1864 apud GABRIEL, 2013, p. 417)
Sônia Aparecida Fardin
Campinas, 17 de maio de 2020
(em memória de Augusto Buonicore (1960–2020))
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Pretendo partilhar aqui algumas reflexões obre o que avalio ser urgente indagar no que toca aos museus e afins, nesse tempo já inaugurado mas que ainda não logramos nominar devidamente.
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FONTES
GABRIEL, Mary. Amor e Capital — A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

 

 

 Para pensar o sagrado, o fotográfico e o expográfico.


Bom Jesus da Lapa - BA, 2006 - Fotógrafo João Zinclar
 Acervo João Zinclar 
https://ajz.campinas.br

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